Vingança. Maior detetive do mundo. Cavaleiro das Trevas. O  herói criado por Bob Kane e Bill Finger teve sua história tão contada e recontada que já povoa parte do imaginário do público da mesma forma que ocorre com mitologias de culturas distintas. Sendo assim, Matt Reeves tinha uma tarefa complexa em mãos: realizar uma nova releitura para o personagem em que ao mesmo tempo requer que o diretor insira sua própria visão na história e personagens já conhecidos, mas sem descaracterizar aquilo que está presente no imaginário do espectador. Seja ele um leitor de quadrinhos ou somente um espectador do cinema ou de outras mídias que o herói, em mais de 80 anos, se fez presente. E superando as — altas — expectativas, seu Batman (The Batman) consegue entregar tudo isso, e com uma qualidade impressionante.

Essas altas expectativas, por sua vez, vieram com o torcer de nariz de alguns pela escolha do elenco principal. Ou, mais precisamente, com a escalação de Robert Pattinson como Bruce Wayne/Batman, injustamente criticado por sua performance de um filme de — literalmente — 14 anos atrás. Em contrapartida, além da ótima carreira construída pelo ator no decorrer desse tempo, havia também a escolha de Reeves na direção. Um nome assegurado pelo alto nível de sua filmografia, que inclui Cloverfield: Monstro e duas incursões na elogiada trilogia Planeta dos Macacos. Um diretor que, como sua filmografia indica, sempre sabia o resultado que queria entregar em cada um de seus projetos. Não é à toa, portanto, que não apenas Pattinson como todo o elenco funcione exatamente como deve para a história que Reeves quer nos contar.

Sabendo que não há necessidade de entrar nos pormenores da origem do personagem, Reeves opta acertadamente por dissecar apenas os aspectos relevantes à esta obra em si, mais preocupado em estabelecer uma mitologia do que reconstruí-la novamente do zero. Assim, em vez de pérolas de um colar quebrado caindo nas ruas de Gotham pela enésima vez, há um cuidado maior em detalhar o modo como o protagonista vem agindo, suas intenções, crenças e traumas. E não apenas com ele, já que diversos coadjuvantes tem suas índoles, intenções e personalidades devidamente aprofundadas pelo texto co-escrito por Peter Craig e Reeves. Sem dúvidas um dos grandes acertos da obra, pois há tempos que um filme do herói não havia se proposto a explorar tão a fundo a mente do cavaleiro das trevas, algo realizado de forma brilhante e funcional à trama, sem torná-la contemplativa demais. Afinal, é uma obra para o mesmo público que conhece o herói, mas que também procura em The Batman uma espécie de filme-evento, que se não se expande na grandiosidade, o faz no senso de espetáculo.

E embora Reeves entregue, eventualmente, este espetáculo, é perceptível como sua obra adquire tons muito mais soturnos e intimistas, quase na contramão do que vem sendo feito no gênero mais recentemente. De fato, não fosse por Robert Pattinson desfilando em cena trajado de homem-morcego, Batman confundiria-se facilmente com obras como Se7en ou Zodíaco, não apenas pela sobriedade da narrativa quanto pela forma que o Charada de Paul Dano se faz presente — através de mensagens cifradas, enigmas e vídeos — e cuja presença inspira-se livremente em diversos serial killers, da ficção ou não. Se suas cartas lembram as do assassino do Zodíaco, seus jogos e armadilhas lembram mais o show sádico visto em Jogos Mortais — tudo ajustado para a classificação PG-13, é claro —, enquanto detalhes como as letras maiúsculas ou destacadas do nome do herói nas cartas endereçadas a ele pelo vilão são sempre o B, o T e o M — “BaTMan” —, remetendo a outro serial killer real: BTK.

Claramente inspirado por essas narrativas, ficcionais ou não, Batman abre margem para que tanto Reeves quanto Pattinson abracem um lado pouco explorado — mas sempre muito solicitado entre os fãs — do detetive. É curioso como o desenvolvimento se dá com diversos desdobramentos dos enigmas propostos pelo Charada, que conseguem despistar o espectador de vista para que haja espaço para surpresas no decorrer dos atos finais, mas sem tornar a obra confusa. É um equilíbrio interessante e funcional, dando espaço para sequências de ação grandiosas — a perseguição no Batmóvel é um dos grandes momentos do filme —, mas também a diálogos marcantes que entregam o necessário sem se tornar expositivos demais. Tudo funciona de forma bastante orgânica, estabelecendo aos poucos a mitologia, como o tempo que o Batman está em ação, a sua relação com Gordon (Jeffrey Wright) e a polícia de Gotham, e também o próprio passado da cidade que ganha ares de protagonista aqui, já que existe uma relação bem estabelecida entre acontecimentos anteriores à obra e as intenções do Charada.

Por sinal, é importante ressaltar a presença de coadjuvantes para entender um pouco da dinâmica empregada aqui. É sintomático do cinema-espetáculo recente que não é mais possível ter dois ou três personagens centrais, pois dificilmente isso seria suficiente para desfechos grandiosos serem criados. Em Batman, Reeves lida com não menos do que seis personagens relevantes para a obra, além do próprio protagonista. Mais do que coadjuvantes ou antagonistas, entretanto, todos os personagens são catalisadores para a narrativa, exercendo um papel específico na trama como em um jogo de xadrez bem orquestrado. Assim, além de Charada, a presença do Pinguim de Colin Farrell e da Selina Kyle de Zoë Kravitz, por exemplo, não se canibalizam entre si e tampouco parecem estar em tela apenas para plantar a próxima ameaça da franquia. Com uma boa combinação entre estes personagens para entregar a melhor dinâmica possível, a direção consegue ritmar bem os acontecimentos, desenvolvendo bastante a narrativa em um curto espaço de tempo, mas sem atrapalhar o ritmo.

E no centro desta nova Gotham — com uma atmosfera nova-iorquina desta vez —, está Robert Pattinson que entrega, possivelmente, a melhor versão cinematográfica do homem-morcego. Ainda um tanto imaturo, com um aprofundamento psicológico interessante e um ar detetivesco praticamente inédito, o ator performa um Batman muito físico, que frequentemente expõe-se como um homem que é possível ser destruído pelas ameaças ao redor, ainda que nunca seja. É uma versão muito mais humana do que as versões anteriores, que aproveita o melhor das versões de Tim Burton e Christopher Nolan — que, cada qual à sua maneira, injetaram personalidade em suas adaptações do herói — e ainda carrega ares da elogiada versão da série de videogames Arkham para apresentar uma releitura crível, mas ainda suficientemente fantástica do vigilante. 

Não é em vão, portanto, que Reeves aproveite tão bem a escuridão para explorar sua versão do personagem: o Batman do diretor não revela-se nos diálogos, nos olhares, mas na obscuridade de sua própria existência. Seu caminho encontra-se nas mentiras encobertas e nos instintos reprimidos, o que não apenas justifica, mas potencializa a presença da Mulher-Gato de Kravitz, responsável por “destravar” o íntimo de Bruce Wayne — de várias formas — em um jogo de gato e morcego cuja tensão sexual é palpável, não apenas pelos enquadramentos e pelo jogo de cena entre Kravitz e Pattinson, mas pela fotografia que repetidamente adquire cores quentes, como o laranja e o vermelho, sendo esta última uma cor tradicionalmente relacionada à luxúria. A sensualidade exalada em Batman, assim como a violência de alguns momentos, são tão viscerais quanto possível nos limites da classificação indicativa da obra. É possível sentir o mesmo na trilha sonora de Michael Giacchino, compositor acostumado às narrativas de super-heróis e que aqui captura bem o teor provocativo em suas composições.

Se a gata de Zoë Kravitz evoca a visceralidade pela sexualidade presa por trás das máscaras — da gata e do morcego —, o Charada de Paul Dano realiza isso através do flerte terrorista que o personagem se coloca. O sadismo do vilão, inclusive, é um viés perfeito para que Reeves crave sua narrativa nos dias de hoje: com lives na internet e um público tão ou mais sádico quanto ele, a palavra do vilão espalha-se por Gotham em um tipo de crítica ao comportamento incel, comum nas redes sociais. Paul Dano, um ator de calibre invejável e que sempre entrega performances incrivelmente intensas, surpreende por protagonizar um comentário friamente incisivo sobre a cultura de ódio que, com as vias ilimitadas da internet, não encontram barreiras ao explorar o ódio e a revolta para reagir violentamente de fato. Seu Charada poderia facilmente trocar as cartas enigmáticas por chacinas em colégios e Dano permaneceria a escolha perfeita para o papel, pois seu vilão traz uma performance não apenas perturbada, mas cruel, sádica, imprevisível. Seu Charada certamente será lembrado por ser tão assustador quanto o Coringa de Ledger.

Mantendo um viés humano e realista, mas com uma sobriedade ainda maior que a encontrada na elogiada trilogia de Nolan, Batman de Matt Reeves ecoa ares de adaptações anteriores — há uma atmosfera gótica bem particular no design da Mansão Wayne — enquanto trilha seu próprio caminho. Politizado, visceral, sexy, humano. Essas são apenas algumas características que dão o tom da nova adaptação, que paga seu preço pelo jogo com diversos personagens e subtramas, tropeçando no desfecho — que parece não vir ao trazer diversas “sub-conclusões” — enquanto tenta suavizar algumas questões, tornando-se — ou fingindo se tornar — mais inocente do que é de fato. Mas cabe aí o charme da nova versão: não existe a perfeição fantasiosa da era pré-Nolan, mas também não abusa da veia cínica da trilogia do diretor. Pelo contrário, incorpora a si próprio tais características extremas enquanto flerta com a sujeira, com o impuro. E desta forma, reapresenta o velho conto do cavaleiro das trevas de uma forma imersiva e sedutora.

90%
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Ótimo

Batman (2022)
País: EUA | Classificação: 12 anos | Estreia: 03 de março de 2022
Direção: Matt Reeves | Roteiro: Matt Reeves e Peter Craig
Elenco: Robert Pattinson, Zoë Kravitz, Paul Dano, Jeffrey Wright, John Turturro, Peter Sarsgaard, Andy Serkis, Colin Farrell, Barry Keoghan.

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"Os filmes existem, é por isso que eu assisto!" Não é exatamente um "crítico de cinema", mas curte o termo "Filmmelier". Sonha em crescer e ser o Homem-Aranha um dia. Acredita que a vida não é sobre o quão forte bate, mas o quanto se aguenta apanhar. Mestre Pokémon, Sonserino e assíduo visitante da Terra Média.

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