Sabe aquela sensação de sair de um afogamento, quando algo impressionante acontece e você esquece de respirar, e aí, quando finalmente acaba, você precisa recuperar o fôlego? Quando a pessoa amada passa na sua frente e assim que ela se foi, você percebe que estava segurando a respiração. Ou naquela jogada decisiva que todo o estádio para por um segundo para se concentrar. Provavelmente todo mundo tem momentos específicos que causam essa sensação. Recentemente eu me reencontrei nessa situação ao fazer uma maratona de leitura de Tungstênio e Luzes de Niterói, duas obras do quadrinista brasileiro Marcello Quintanilha.
Nascido em 1971 em Niterói, Quintanilha começou a fazer quadrinhos em 88, ainda descrente que aquilo pudesse se tornar uma profissão. Nos anos seguintes fez trabalhos em revistas como Heavy Metal, Metal Pesado, Zé Pereira e Nervos de aço. Sua primeira Graphic Novel saiu em 1999, Fealdade de Fabiano Gorila, uma história baseada na vida de seu pai. A partir daí, álbuns e graphic novels se tornaram os modelos que o quadrinista mais se dedicou. No Brasil as obras dele são publicadas pela Editora Veneta e são facilmente encontradas nas lojas online. Nesse texto eu vou me dedicar às duas obras já citadas.
Tungstênio foi lançada em 2014, mas ganhou maior notoriedade em 2016 ao ser premiada pelo Festival Internacional de Quadrinhos de Angoulême, na França. Hoje a HQ já é considerada um clássico da produção brasileira, sendo inclusive interpretada para os cinemas em 2018 (que pretendo falar logo à frente).

Luzes de Niterói, o último trabalho do autor, foi lançado em 2019 no Brasil. Diferente de Tungstênio, é uma HQ totalmente colorida e que se passa em outro momento, em um período muito mais familiar para Quintanilha. A história é situada em Niterói, cidade natal do autor, e narra um dia bem confuso para seu pai, Hélcio (o protagonista) e seu amigo Noel. O gatilho para as duas narrativas é a mesma: a pesca ilegal com dinamite. Segundo o quadrinista, toda narrativa é baseada na história que seu pai lhe contou, porém com elementos de ficção feitos para a preencher. Ele retorna à um tema que sempre foi muito presente pra ele: o cenário do futebol carioca da década de 50.

Lendo as duas obras de forma seguida, de cara uma coisa já me chamou atenção: as cores. Enquanto Tungstênio se apoia em uma arte preta e branca e com sombreamentos e texturas mais detalhadas, numa arte muito mais próxima do real, Luzes de Niterói foi feita com uma paleta de cores limitadas, pintura chapada, dando mais destaque aos traços e expressões dos personagens. Não se engane, as duas são artes que, de cara, já se nota serem do mesmo quadrinista, porém são feitas de forma única.

Quintanilha clama que em cada quadrinho seu ele reaprende a desenhar, e por isso cada um é um organismo único, uma forma única, mas ainda assim é muito sua. Independente da forma que ele dá para sua obra, no fim ele narra o que queria, chega no seu melhor formato e fica provado que é um dos maiores contadores de histórias do Brasil atual.
Outro ponto que me impressionou foi a construção de personagens. Nenhuma personalidade é apresentada de graça. Sabe aquela sensação de que tem vários personagens parecidos e acabamos nos perdendo no meio da história? Ela não existe aqui. Quintanilha é capaz de apresentar um personagem em duas páginas que vai alterar todo rumo da narrativa ou, ao menos, adicionar maior profundidade. O soldado que trabalha no forte em Tungstênio revela o caráter militar de Seu Ney. O explosivo e rigoroso Seu Rosa é o treinador que contrapõe o espírito malandro do protagonista Hélcio. Personagens com pequenas participações, mas que tem valor na trama.
A brasilidade nas obras de Quintanilha é apaixonante. Não são histórias sobre super-heróis ou cowboys, são histórias reais de pessoas genuinamente brasileiras. Acontecem em cenários brasileiros que são tão específicos que é difícil acreditar que Quintanilha vive a 15 anos em Barcelona. Porém, para ele, a distância geográfica não representa o distanciamento do Brasil. Em Tungstênio, por se tratar de uma narrativa com temporalidade mais próxima da atualidade, notamos ali desde o boteco na praia até a vestimenta dos personagens características típicas do Brasil. Já em Luzes de Niterói, o artista reconstrói uma cidade que só existiu nas histórias contadas por seu pai, um tempo anterior ao dele. Inclusive percebe-se aqui uma grande nostalgia por tempos não vividos, que Marcello só conheceu a partir das narrativas de Hélcio Quintanilha.

São tantas coisas que eu queria apontar, discutir e debater nas obras do Quintanilha que fico até perdido. Elas despertam muitas emoções ao longo da leitura. Para alguns é difícil ler tudo sem parar para dar uma respirada, para mim foi difícil parar. O encontro final de todos personagens de Tungstênio em um baile me deixou com aquela sensação de fim de novela. A luta de Richard com os pescadores que me faz sentir um misto de Temperatura Máxima com Linha Direta. A narração da partida entre Vasco da Gama e Canto do Rio Foot-Ball Club (a linguagem cinquentista é outro show à parte em Luzes de Niterói) me deixou vidrado em uma partida de futebol pela primeira vez na minha vida. Não era apenas sobre torcer para um time, aqui eu já torcia para o próprio Hélcio e ficava preocupado com a bronca que tomaria do Seu Rosa depois da partida. No fim das duas obras a mesma sensação me tomava conta: Êxtase.
As obras de Marcelo Quintanilha são essenciais para qualquer um que pretenda conhecer quadrinhos brasileiros, e mal posso esperar para ler outras como Todos os Santos e Talco de Vidro.
Tungstênio, o filme.

Finalmente temos uma HQ brasileira realmente interessante para se tornar uma boa adaptação cinematográfica. Lançado em 2018 e dirigido por Heitor Dhalia, Quintanilha já declarou que não teria mudado qualquer coisa no filme.
De forma inversa, ano passado ao encontrar o quadrinista eu o perguntei se, de alguma forma, o fato de sua obra ter se tornado um filme teria afetado sua escrita (como aconteceu com outros, como Mark Millar que já escreve de forma cinematográfica). Quintanilha disse que nada mudou. Agora após ver o filme eu pude notar que nada mudou, não precisa mudar, o filme que se adaptou à HQ, não o contrário.
Não quero comentar aqui sobre atuações, som ou outras partes cinematográficas (até porquê essa área não é a de cinema), mas sim da linguagem. Transportar uma história fechada assim para outra mídia sempre traz a preocupação com a linguagem utilizada. Para ser fiel à narrativa original, Tungstênio conta com um narrador, a voz do ator Milhem Cortaz, que segue contando partes, fazendo os comentários que na HQ são bem presentes nos quadros, trazendo mais profundidade para alguns personagens ou contando história de flashbacks. Aliás, como recurso visual temos o retorno a vários flashbacks picados que aos poucos revelam partes dos personagens.

A história é fiel, cenas tiradas da própria HQ que são relidas de forma cinematográfica. Acho que um fã destas duas mídias não poderia esperar uma adaptação melhor. Toda a forma dos personagens e a tensão, o drama, está tudo ali. A expressão de Caju no baile, o desespero no rosto da Keira, a fúria rigorosa em Seu Ney, o olhar de Richard.
As obras de Quintanilha devem ser lidas por todo mundo que gosta de quadrinhos e que respeita esse formato. Só recentemente descobri isto e queria que alguém tivesse me dito antes. É algo que deve ser compartilhado então escrevi esse texto para dizer: Por favor, leiam Quintanilha!